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GEOPOEMA:

A escuta poética de Luciana Kater

 

Eu estou apaixonado

Por uma menina, terra

Signo de elemento terra

Do mar se diz: Terra à vista

Terra para o pé, firmeza

Terra para a mão, carícia

Outros astros lhe são guia

 

Terra, de Caetano Veloso[1]

 

Dar sentido ao fazer artístico é, de forma pendular, um equilíbrio contínuo entre o devir da razão e as pulsões de vida – essa que nos põe diante do imponderável diariamente. É nesse lugar de contínua negociação que a escrita poética da artista Luciana Kater (1980; nasceu em São Francisco, EUA; vive e trabalha em São Paulo) emerge aos nossos sentidos. Não nos parece haver uma motivação certa para que a prática artística se ponha a desenrolar. Do contrário, há certos encantamentos inexplicáveis que se impõem à rotina do cotidiano. Não se trata, obviamente, de nada sobrenatural, mas de uma espécie de tomada de consciência que flui para uma escrita da forma: dar sentido material aos fluxos e imagens que aparecem no imaginário da artista.

Escrever continuadamente com o traço das formas e volumes que se anunciam é o exercício norteador que define a materialidade da obra de Kater: aquilo que é composto para a captura e apreciação do olhar e, por consequência, o despertar de tantos outros sentidos coadunados. É algo análogo à própria sinestesia lírica de Caetano Veloso, proporcionada pela canção “Terra”. Há em seus versos uma descrição encantada de quem observa a própria Terra ao longe, por meio do recurso fotográfico, quase que como um astronauta em seu arrebatamento ao se deparar com a forma esférica do planeta e suas cores. Há, portanto, uma obsessão por certa descoberta: a visão das imagens sublimes do planeta Terra. Trata-se, assim, de uma forma possível de apaixonamento.

Gosto de imaginar que Kater passa por esse mesmo tipo de arrebatamento, uma forma de paixão por certas geometrias que podem estar em sonho ou nas vistas da natureza ou da cidade. Assim como Caetano, que canta um deslumbre e o descreve, a artista traduz plasticamente um sentimento parecido com as curvas estruturadas e as formas equilibradas que constrói, claro que por meio de uma situação plena de equilíbrio sob a firmeza da terra e o horizonte à vista. Entretanto, tomemos cuidado! As obras que se apresentam no horizonte limiar expositivo não são espelhamentos ilustrativos do que o olho da artista capta, mas um raro trabalho de abstração em que certas lembranças subconscientes vão sendo interpostas nas camadas que definem obra por obra.

As geometrias compositivas sinuosas nos fazem pensar nas contínuas paisagens que nossos horizontes carregam. Isso posto, posso imaginar miradas diversas a partir das obras da artista: um jogo de nuvens e sua dança com a luz do sol; o território entre e o campo e a cidade, que se descortina quando sobrevoamos uma região; a vista do litoral e suas várias camadas até as serras ao fundo, quando nos viramos para trás em uma embarcação; o simples olhar a partir de uma janela; um corpo adormecido, despido e deitado; uma sombra construída na parede; uma imagem gerada por inteligência artificial que se impõe como descanso de tela em nossos computadores; entre tantas outras. Poderia seguir narrando imagens, em um jogo cíclico e infinito de repertório que pode emergir na observação fantasiosa de todas as obras.

Dessa maneira, me parece pertinente olhar para os materiais utilizados e a técnica que acompanha a manufatura de seus trabalhos. De partida, percebo um respeito ao que o material pode oferecer em comunhão com o tecido, com a linha do desenho ou no contato com aquilo que emoldura a obra. De bate-pronto, vamos querer associá-la à tradição construtiva da arte brasileira, algo vicioso em nossa história social da arte. Todavia, ao nos debruçarmos com mais atenção, percebemos um território de relação objetiva com a materialidade existencial da terra sobre a qual nos equilibramos e miramos o horizonte. Se em alguns trabalhos vemos uma espécie de enquadramento da paisagem, em outros enxergamos, por exemplo, a sugestão da bandeira ou da flâmula – símbolos de presença e demarcação de territórios oníricos ou reais. A meu ver, há, na produção da artista, um rigor suave que é mais intuitivo do que propriamente da boa forma em aproximação com a geometria construtiva.

Esse rigor nasce de uma série de ações que a artista procura tecer a partir de seu estudo empírico e sensitivo de ateliê. Ao conhecer a linguagem do couro, da camurça e do tecido, vários procedimentos foram sendo implicados na composição das peças: sentir, manipular, cortar, dobrar, rasgar, colar, sobrepor, encaixar, tecer, medir, conferir, juntar, montar, alisar, tensionar, esticar, posicionar, conter, abarcar, prender, emoldurar, enquadrar e pendurar. Em seguida, compor conjuntos, perceber unidades e escrever essa poesia geográfica da forma.

Foi durante os últimos quatro meses que a artista se colocou em desafio. Frequentando diariamente o seu ateliê, o espaço que antes era a casa de seus avós, ela suspendeu o tempo da racionalidade cotidiana e mergulhou em um processo intuitivo de criação, entremeado por delírios de lembranças, conversas consigo mesma ou com visitas, leituras teórico-filosóficas e, claro, reconhecimento daquele seu território temporário de atividade. Não menos relevante, portanto, estava ela diante dos vestígios materiais e territoriais de sua família ao conceber paisagens em relação ao estar do seu corpo naquele ambiente. Não quero insinuar um desejo nostálgico em seu trabalho; ainda assim, gosto de enfatizar que atuamos invariavelmente sob os efeitos de onde estamos. São cheiros, cores, texturas, luzes (e muito mais) que guardamos dos ambientes por onde nossos corpos circularam.

Agora, um pouco mais distante da solidão pandêmica, foi a vez de ela se haver com a memória afetiva. O quanto dela há em seus novos trabalhos? Não saberemos dizer. Só podemos intuir que esse lugar misterioso enriquece a própria natureza das obras. Será que ele reside em alguma passagem da infância? Enquanto escrevo sobre este novo corpo de trabalhos de Luciana Kater, lembro de um poema de Ana Martins Marques – talvez a poeta brasileira que melhor ecoa a educação sentimental de uma geração – que começa assim:

É como se a infância não fosse um tempo

mas um lugar

com seus cumes e seus esconderijos

suas pequenas clareiras

um lugar, aquele onde cometemos

nosso primeiro crime[2]

 

É como se aquela sala acarpetada em que a artista trabalha, já tão erodida pelo tempo, tenha de fato estruturado o lugar simbólico para o próximo crime da artista: a confabulação de um novo momento para a sua produção. Dessa forma, passamos a compreender que a elegância silenciosa do trabalho não significa a abstenção dos signos. É justamente na grafia dessas imagens e estruturas paisagísticas que a artista nos presenteia e nos afeta sensorialmente. São também a partir desses desenhos e formas que conseguimos, nós todos, elaborar um intrincado jogo retórico. Cada espectador, a partir de suas experiências e repertório, imagina semelhanças ou analogias com os espaços de vivência e existência, além dos símbolos das bandeiras ou flâmulas e dos objetos orgânicos propostos pela artista, sejam naturais ou construídos. São essas arquiteturas da paisagem que se conformam no corte, na dobra, nas curvas e nas cores do couro e da camurça dos trabalhos.

 

* * *

 

Ao se propor a olhar com amplitude, entendemos que Luciana Kater é uma artista de afinidade sensível com os materiais e do rigor das formas e desenhos que deles possam ser sugeridos. E tal precisão plástica não é de hoje, mas remonta aos primeiros anseios de uma artista em constante formação. Se em sua outra banda da vida profissional o discurso é o fio condutor do que é sensível e racional, nesta o silêncio da matéria em forma é a linha guia de sua prática artística. Kater, para além de seu labor artístico, é terapeuta, o que a faz sensível e dedicada à escuta do outro. Suponho que seja justamente essa apurada capacidade de escuta que a coloca em sintonia com a matéria plástica. Desse modo, o couro é o material da vez, aquele que lhe capturou de maneira sinestésica e foi trabalhado em seu novo corpo de obras.

A mostra Geopoema, como a artista tão bem a nomeou, é um experimento de natureza plástica que nos põe a perceber a paisagem como construções poéticas entre o sonho e o real, o delírio e a constatação. Sem qualquer romantização, é essa grande partitura gráfica que melhor ilustra a escuta poética da artista, desde o trabalho mais antigo em exposição, Curva de contágio, até as quase bandeiras e suas geometrias centralizadas. Todas essas peles que se insinuam e se projetam no espaço desfilam pelo horizonte expositivo envolvendo e abraçando os ambientes das salas expositivas. Em última instância, é um desejo de abarcamento da artista que se manifesta, colocando sua produção agora em um outro patamar no qual todos os trabalhos parecem exercer uma relação de interdependência: um movimento rítmico único dos sons captados pela escuta  poética da artista que é, ao mesmo tempo, uma geografia poética própria de seu estar no mundo.

 

Diego Matos

fevereiro de 2024.

 

[1] Trecho inicial da canção “Terra”, de Caetano Veloso, que abre o disco Muito, lançado em 1978. Importante pontuar que o artista compôs essa canção ao ter em mente a lembrança das fotografias feitas da Terra em 1969. Até então não se tinha acesso às imagens que hoje nos são comuns. Na cadeia, Veloso recebe a visita de sua esposa Dedé Gadelha, que lhe dá uma revista Manchete com aquelas imagens deslumbrantes da Terra. Aquela forma impregnou o imaginário do compositor, que a reporta em canção quase dez anos depois.

[2] Primeiros versos do poema “É como se a infância não fosse um tempo”, da escritora Ana Martins Marques, presente no livro: MARQUES, Ana Martins. Risque esta palavra. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. p. 21.

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